EDNARDO

CANAL NOOLHAR - SISTEMA O POVO DE COMUNICAÇÃO
Coluna - Crônica - Periférica
Eleuda de Carvalho
Fortaleza - Ceará, 28 de março de 2006
PERIFÉRICA http://www.noolhar.com/colunas/periferica/579741.html

Ednardo

Em sua crônica desta semana, Eleuda de Carvalho conta histórias e faz uma homenagem ao cantor e compositor Ednardo

Eleuda de Carvalho (*)


Fotos: site oficial:
http://www.ednardo.com.br



Devia ter uns 14, 15 anos, por aí. Garota de periferia. Barra do Ceará. A turma, naquele tempo, só queria saber de rock. Pesadíssimo. E, mesmo tendo o umbigo no sertão, o gosto do pai pelas coisas lindas de Luiz Gonzaga, o ouvido acostumado à viola da cantoria, dos programas que o avô escutava no rádio ABC - posto em lugar de honra da sala, com toalhinha de renda e tudo, só perdendo em importância para o Coração de Jesus - estava naquela idade de olhar apenas para os galhos mais altos, esquecida de que a seiva que os alimenta vem lá de baixo, do contato verdadeiro com a terra, substâncias generosas captadas pela raiz.

Sim. Tinha uns 15, 14 anos, por aí. Mas então, uma novela surrealista na tevê. E o som que abria todo capítulo, inusitado. O ferro pulsante do triângulo e guitarras. A letra, um romance que já tinha lido num cordel, nas férias do sertão. E havia a voz, o dono da voz, o sorriso claro. Um cara da Terra da Luz. Foi assim que o meu gosto musical se aprimorou: ao toque do Pavão Mysteriozo.

Sim, aquele era um tempo de descobertas. Devo dizer que sempre estou num tempo de descobertas, mas estas, a dos anos verdes, são fundamentais, são o assento de tudo o que virá depois.

No rastro de Ednardo, sob a luz das penas do pavão, veio junto o Pessoal do Ceará. Belchior e sua alucinação, Fagner e seu canto torto feito faca. Devo revelar que a primeira descoberta veio um pouquinho antes, com o Peso - Luiz Carlos Porto nos vocais, mas aí era dentro do que eu gostava de ouvir, som pesado, com a cabeça feita pra não dar bandeira etc.

O Pessoal do Ceará foi quem, de verdade, abriu pra mim as portas da percepção. Havia vida, e muita, muito além dos quatro acordes guitarra-baixo-bateria.
Havia modernidade, atitude e ousadia aonde eu menos suspeitava: na batida sincopada do maracatu, na irreverência do xote, xaxado, baião.

Aos 18, ganhei a cidade. Passei no vestibular e tudo se ampliou, novos amigos, o começo das farras - papai já não podia segurar aquela ovelha negra em casa e o bairro já não me cabia mais.

Sexta-feira era dia de Estoril. Ali nós, os infantes, ficávamos babando com aquelas mesas lotadas de gente interessante. Gente de esquerda, artistas plásticos, músicos, loucos gurus. Flertar um papo entre o Augusto Pontes, o Cláudio Pereira, o Geraldo Markan e outras nobilíssimas figuras valia mais do que muita graduação. Era quase uma pós, meu caro!

Certa feita, o timbre claro daquela voz querida, a cabeleira soprada pelo vento que vinha das longarinas da ponte velha que inda não caiu nem cairá. Ednardo estava na cidade! Lembro de uma meninazinha brincando ali por perto, naquelas mesas lotadas e festivas, uns imensos olhos azuis: Joana Limaverde, a filha do Ednardo, hoje atriz.
Devia ser o começo de abril de 1979, sob o signo do carneiro - quando vi o cartaz no restaurante universitário no Campus do Pici. Massafeira. Como esquecer!

Três dias que, se não abalaram o mundo, mexeram na modorra da cidade. Theatro José de Alencar em festa. Feira de artesanato, teatro, performances e muita muita muita música. Calé Alencar, Chico Pio, Ângela Linhares, os manos Fonteles, o Serjão com seu citröen, a Mona Gadelha, a Teti, Rodger Rogério, o Perfume Azul. Um projeto coletivo, mas que teve a participação fundamental do Ednardo.

Fortaleza, porém, ainda não estava preparada para o salto (estará?), senão aquilo tudo podia ter sido um turbilhão, algo assim como o Mangue Bit nos anos 90 ou até mais, era o que prenunciava a força da nossa mistura. Em 80, outro encontro pra ficar na história, o lançamento do disco duplo Massafeira Livre. Desta vez, teve Amelinha e o cantador psicodélico Zé Ramalho.

Mas aí, bem no começo dos anos 80, quando começou a soprar o vento bom da liberdade, a cena pop mudou. Vieram as bandas roqueiras atropelando a cena no país dos banguelas. Talvez pela novidade, ou quem sabe pela soberba da nossa tremenda ignorância, outros sons daquele tempo nem chegaram a tocar no rádio, como a banda baiana Bendengó ou a potiguar Flor de Cactus.

Daí talvez o relativo olvido a três discos fundamentais na carreira de Ednardo, que pra nossa sorte acabam de ser lançados no mercado em CD. Libertree, Terra da Luz e Ednardo (este, com Rockcordel, Encantado, Ponto de Conexão, que não consigo parar de ouvir). Terra da Luz amplia todos os ritmos experimentados antes por Ednardo, com Blue à flor da pele ou Como era gostoso o meu inglês. E ainda traz a delícia de Pastoril, Labirinto, Asa do Invento. De Libertree, Agreste blues, Tecer Novo Mundo, O som da estrela, o maracatu Outro romance.

Agora é torcer pra que as empresas fonográficas apresentem aos ouvidos da novíssima geração discos seminais como Berro e O azul e o encarnado. Ednardo completa em 2006 três décadas e meia dedicadas à arte. E no próximo dia 17 ele faz aniversário. Pertinho do aniversário da cidade, que ele canta em verso, som e voz.

(*) Eleuda de Carvalho é Jornalista, Cronista e Escritora -  Jornal O Povo - Vida & Arte e Canal Noolhar - Fortaleza/Ceará