Um vôo para os braços do público
Ednardo no MAM

Jornal O Globo - Rio de Janeiro, 14 / 10 / 1976
Pág. 43 - Segundo Caderno
Matéria Condensada
ANA MARIA BAHIANA

N.E - Aura Edições Musicais


Ednardo em desenho de Petchó - 76



Começou ontem, no Museu de Arte Moderna, a primeira temporada profissional de Ednardo, no Rio (antes, seu contato com a platéia carioca se resumia a um espetáculo muito informal no Instituto Villa Lobos, ano passado).
É, também, sua primeira aparição no Rio depois do sucesso maciço de "Pavão Mysteriozo", a música que via novela, tirou-o do desconfortável limbo de "novo-e-desconhecido".

Ele sabe que grande parte do público vai vê-lo por causa disso, e provavelmente espera ouvir o tema de "Saramandaia" ou o recente sucesso "Artigo 26". Mas ele pretende oferecer um outro produto: Ednardo mesmo - além do "Pavão", um compositor com oito anos de carreira, três elepês, dois individuais e um com a dupla Rodger e Teti, gravados e mais um a caminho.

Com ele, dois músicos: Murilo na bateria e percussão e Marinho no baixo e viola.




N.E. Aura - Neste Show do MAM - Museu de Arte Moderna - Rio de Janeiro, nos dias 13, 14 e 15 de Outubro de 1976, os músicos foram: Robertinho de Recife na guitarra e viola, Marinho no contra-baixo e Murilo na Bateria e Percussão e Ednardo no Violão.

Na vitrola, o disco era de um grupo novo, de origem desconhecida, nenhuma divulgação, mas som muito competente, o Fazenda Modelo. Ednardo entrou, ouviu e gostou: a faixa em questão era um pot-pourri de Luiz Gonzaga. Alguém perguntou se ele conhecia o grupo - "só de nome" - e se sabia que eles tinham gravado o "Pavão Mysteriozo". Não ele não sabia. E quer ouvir? Um sorriso entediado e um aceno de mão foram a resposta. Negativa é claro.

Ednardo tem bons motivos para estar cheio do "Pavão". Mas ao mesmo tempo é grato ao bicho que impulsionou sua dura carreira de "perpétuo novo" da música popular. Grato, mas não deslumbrado. Ednardo, depois do Pavão continua com o mesmo olho atento e o mesmo pulo de gato de antes. Até em dobro.

- "Sabe, essa história do "Pavão" na novela... até eu levei um susto danado quando ouvi a música na televisão. Eu não sabia de nada. Até hoje não sei bem como a música foi parar na novela. Já apareceram diversos pais da criança. Cada pessoa que eu encontro me diz: "Olha, fui eu que botei tua música aí, eu é que dei uma força, falei com não sei quem..." A todos eu agradeço, é claro, essa ajuda toda, muito legal da parte deles... mas não sei.. Acho que deve ter sido o próprio Dias Gomes que ouviu assim de repente a música e viu que ela tinha tudo a ver com a totalidade de sua obra. Porque eu mesmo nunca vi um caso de casamento tão perfeito entre duas coisas feitas em separado".

Segundo contas, arredondadas, e significativas, o avulso
(disco compacto) com a música-tema de Saramandaia já vendeu 200.000 (duzentas mil) cópias. E os dois elepês de Ednardo (lançados neste ano de 76), atingiram até agora, índices mais que razoáveis: 40.000 (quarenta mil) de "Pavão Mysteriozo", e 25.000 (vinte e cinco mil) de Berro, vendidos.

O vôo do Pavão, abriu outras portas para o cearense tranqüilo, ex-funcionário da Petrobrás. Não apenas as de público - e essas são realmente notáveis, - o fato de poder tornar o trabalho conhecido por milhares de pessoas, atingir e tocar essas pessoas - e mais, a da própria estrutura industrial da música, da qual ele era, mal dizendo, um habitante quase indesejável.

- "Toda essa transa da novela, me deu principalmente força, e uma facilidade maior para falar com as pessoas atrás daquelas poltronas na gravadora. Para eles, agora já sou "fonte de renda e bom produto". O contrato recente, prevê excursão para o lançamento do próximo disco.

Entretanto para montar este espetáculo carioca, Ednardo ainda teve que lutar - "Estrutura para fazer espetáculo é uma coisa que falta sempre. Tive que ir lá na gravadora e reclamar. Queriam me dar só um tijolinho de anuncio nos jornais. Estavam achando a estadia muito cara. Mas um show meu representa lucro para eles. O Carlos Alberto Sion (produtor da temporada), estava contando que na semana dos shows de Fagner no MAM, foram vendidos mais 15 mil discos dele. Isso tudo é grana pras gravadoras. Por isso elas tem que investir.


Mas existe outro lado da moeda, Ednardo conhecido como o homem do Pavão Mysteriozo, (ele brinca: "agora eu já sou o nosso Artigo 26, ex-Pavão Mysteriozo"), as pessoas indo aos shows para ouvir apenas o que já conhecem.

- "Olha, essa coisa ainda é difícil falar. Eu sei que o artista não deve hesitar em se atirar nos braços do povo. Não deve temer a força da televisão, o acesso a milhares de pessoas que ela proporciona. Deve fugir do preconceito contra a popularidade. É claro que existe risco, estou consciente dele. No meu espetáculo em São Paulo, pintavam senhoras incríveis, levando seus filhos, e pediam pra eu cantar esta música. Mas não vejo isso só no presente, vejo tudo como um todo, como um processo, vejo o que essas músicas eram antes e o que são agora e o que podem ser no futuro. A gente mesmo não sabe o que a televisão é capaz de fazer, quem vai julgar com maior acerto são nossos filhos, nossos netos. Estou consciente, e não vou assim cegamente. Tem sempre uma coisa dentro de mim, no metabolismo, que alerta.

A temporada carioca - sua primeira produzida em termos profissionais, aqui, a primeira depois do sucesso - não tem relação alguma, nem com o faustoso show paulista
de três meses atrás, nem com a austera excursão nordestina de que ele acaba de chegar. É uma mostra, ele diz, de seu trabalho contido em dois álbuns, numa atmosfera de informalidade.
O Carlos Sion queria uma super produção, a gravadora vetou, naquele momento, diziam, não tinha muito a ver com a realidade brasileira, e instante, e optamos fazer este show no limite do possível.

Para uma pessoa de hábitos frugais, pareceu estranha sua temporada paulista, dirigida por Miriam Muniz na qual não faltavam lantejoulas, marcações de palcos e até um pavão gigantesco compondo o cenário.
- "É, mas não foi idéia minha não. Foi idéia do produtor e da diretora, acharam que ia ter impacto por causa da novela, esses papos. Eu resolvi fazer porque gosto de experimentar, não gosto de recusar, por recusar. Mas não tinha nada a ver comigo, não.
A Miriam é uma pessoa incrível, mas muito autoritária. Aquela história de ter que entrar por aqui e sair por ali, de dizer textos, logo eu, que gosto de improvisar, de curtir em cima do que as pessoas dizem, na platéia. Mas não durou muito não. Comecei a bagunçar tudo.

A excursão nordestina foi mais de acordo com o temperamento de Ednardo. E, de lá, ele trouxe uma nova paixão: pela música dos irmãos piauienses Clôdo, Climério e Clésio, que ele está produzindo para RCA Victor.
- " É uma coisa muito forte, tão forte que me deu vontade de produzir um disco, coisa que eu, habitualmente, nem pensaria em fazer. Mas essa coisa de rótulo é tão grande que outro dia, na papeleta do estúdio, já estava escrito assim: "Pessoal do Piauí".

No entanto, mesmo recusando rótulos, Ednardo sabe que ele representa uma ponta de uma nova estrela, a estrela dos cearenses. Ele rejeita a idéia de "movimento cearense" como contrafação de tropicalismo & baianos, lembra a multiplicidade das obras de Belchior, de Fagner e dele. Mas não nega que no fundo de tudo, tem muito a ver. Que, somados todos os trabalhos cearenses, aparece um painel imenso, uma visão nova da música e da vida brasileira.

- "Acho que aí, tudo remete às origens comuns, a coisa toda forte, incrível que foi, Fortaleza em 68, 69,70, aquelas reuniões todas as noites no Bar do Anísio, onde era um violão só e umas vinte pessoas compondo, querendo mostrar sua música. Havia tanta criatividade no ar que não cabia na cidade, então era uma neurose, uma paranóia insuportável, uma briga entre a gente a cidade, um sufoco. Até que chegou um ponto em que não podia mais, alguns tiveram que sair, que descer para o sudeste,, pra fazer alguma coisa. Quem ficou lá, foi uma loucura, teve gente que pirou, que sumiu. Fortaleza é incrível, os cearenses são criativos, a cidade é belíssima, mas nestes casos sufoca, as pessoas ficam ilhadas, porque tudo acontece no eixo Rio-São Paulo.

Ednardo não diz, mas não é difícil subtender, o verdadeiro, ou um dos verdadeiros significado da arrancada do "Pavão Mysteriozo": o vôo definitivo para além da ilha, de Fortaleza, e ao mesmo tempo, um meio de romper o monopólio do eixo, introduzindo uma voz nova no coro geral de contentes & descontentes, a voz do Bar do Anísio. Primeiro vem o Pavão voando alto, depois já vem o Artigo 26, borbulhando. Depois, quem sabe, virá Ednardo, definitivamente.