EDNARDO 60

Jornal O Povo - Fortaleza / Ceará,
17 de Abril de 2005.
CADERNO ESPECIAL
VIDA & ARTE - CULTURA

Entrevistas - Eleuda de Carvalho / Ethel de Paula
Matérias - Pedro Rogério / Luciano Almeida Filho
Artigo de Ensaio - Gilmar de Carvalho
Depoimentos - Belchior/Augusto Pontes/Nelson Augusto /Teti/Rodger Rogério/Fagner

 

17 de abril marca os 60 anos de Ednardo, que fez o Brasil cantar cordel e maracatu com seu ''Pavão Mysteriozo''. Como homenagem, o Vida & Arte faz um passeio pela vida e pela obra do músico, encontrando no caminho os parceiros, o Pessoal do Ceará, a Massafeira, a Fortaleza das décadas de 60 e 70 e outras memórias

José Ednardo Soares Costa Sousa. Para o Brasil inteiro, basta Ednardo. O nome atiça o cantarolar de gerações que, desde os idos de 70, ouviram a poderosa batida do triângulo de ferro mesclada com a urgência das guitarras, em sua composição emblema, ''Pavão Mysteriozo''. Mas no balaio sonoro de Ednardo, solo ou em parcerias, outras canções ressoam em nossa memória auditiva, desde ''Terral'', do primeiro disco (feito a três, com Rodger Rogério e Teti), passando por ''Lagoa de Aluá'', ''Artigo 26'', ''A manga rosa'', ''Carneiro'', ''Lupiscínica'', ''Boi mandingueiro'', ''Rubi'', ''Como era gostoso o meu inglês'', ''Ingazeiras'', ''Flora'', ''A palo seco''...

 


EDNARDO - Show Fortaleza
(By: Antonio Duarte 19/08/1998)


Prova deste afeto recíproco foi o show, com Belchior, na praça do Ferreira lotada, no dia do aniversário da cidade, última quarta-feira. Ednardo ainda brindou a platéia com o ''Hino de Fortaleza'', que ele ouviu, pela primeira vez, aos cinco anos. Em outubro do ano passado, em Quixadá, ele também cantou com o coro coletivo do público, durante o I Festival Internacional de Cantadores e Violeiros. Hoje, no dia do seu aniversário, o Vida & Arte preparou este presente, de palavras e afetos, para homenageá-lo. Em entrevista, ele revela sua trajetória, desde as participações em festivais locais, passando pela ida em busca do sonho, até a emoção renovada pela família e os primeiros netos. Veja também depoimentos de parceiros na caminhada, os artigos de Gilmar de Carvalho e Pedro Rogério, além de um passeio - sentimental e imaginário - pelas ruas e lugares que inspiraram suas composições, entre o azul do céu e o verde do mar.

À Ednardo

A obra de Ednardo é a mais delicada e a mais profunda do ponto de vista da cearensidade. Ele soube promover a permanência da tradição em sua obra e fez sucesso com isso. Na verdade, foi o primeiro de nós que fez sucesso, com ''Pavão Mysteriozo''. Ele preservou com muita gentileza e poesia essa coisa do maracatu, das festas populares cearenses, dos ritmos. Eu saúdo a chegada dele aos 60 anos porque é importante chegar a esse momento da vida trabalhando, criando e tocando. A delicadeza de seu projeto estético é algo a ser sempre ressaltado.
Belchior, cantor e compositor

Destaco em Ednardo um privilégio de nascença, que é o fato dele ser um homem bonito. Ednardo é uma pessoa muito educada e um intérprete muito habilidoso com seu canto. Como compositor, sempre teve suas preocupações sociais, sempre esteve de bem com o progresso do povo, com as coisas do Ceará. Além de ser também um grande melodista. É um cara com grande espírito crítico, que algumas vezes é interpretado mal por algumas pessoas.
Augusto Pontes, compositor

Na trajetória de Ednardo como compositor, ele foi extremamente autêntico em termos de cearensidade. Em todos seus discos, ele procurou revalorizar ritmos como o maracatu e falar das coisas do nosso Estado. Dos três que despontaram em meio ao Pessoal do Ceará, ele foi o mais coerente em termos de respeito ao seu projeto estético original. E foi também o idealizador do último grande movimento musical no Estado, que foi a Massafeira.
Nelson Augusto, jornalista e apresentador do programa Pessoal do Ceará, na Rádio Universitária.

Ednardo é um cantor que tem uma voz muito bonita. Como compositor talentoso que é, ele falou e cantou as coisas de sua terra e fez isso ganhar espaço tanto na música cearense quanto na música popular brasileira de uma forma mais geral. Ele mostrou esse lado nordestino, cearense, de sua obra se permitindo viajar por diferentes ritmos. Como toda aquela turma que saiu daqui no início dos anos 70, é um irmão para mim.
Téti, cantora

Eu destaco em Ednardo a coerência dele com a música que ele produz. A relação de Ednardo com Fortaleza, com a cultura do Ceará, é uma relação de amor permanente. E ele levou isso para suas composições e para os ritmos, como o maracatu e o baião. Como toda aquela geração chamada de Pessoal do Ceará, sua grande herança para as novas gerações é o de ter colocado o Ceará no mapa da música brasileira. E destaco também seu lado político, de brigar pelo reconhecimento artístico e autoral dos compositores.
Rodger Rogério, cantor e compositor

Ednardo é meu parceiro. Estudamos juntos no Colégio Castelo, onde ele era o maior goleiro da escola. Naquela época, eu o ouvia sempre tocar piano pela porta da sua casa. Em 68, quando ganhei o festival, é que o vi pela primeira vez com um violão. Foi quando acompanhei a composição das primeiras músicas dele. Em seguida nosso convívio se deu no bar do Anísio. Então a coisa foi assim, do bairro para o bar, e depois para o mundo. Desde então, pouco nos encontramos emocionalmente. Tenho o maior carinho por ele. Já tentei juntar ele e o Belchior num projeto nosso, mas não deu certo por causa deles. Ainda tenho esse sonho, não só de fazer um projeto concreto, como de compor juntos e nos curtirmos um ao outro, sem neuras.
Fagner, músico. 


FORTALEZA

Aldeia em branco e preto

Ednardo topou fazer um passeio afetivo e imaginário pela cidade-natal.
Da memória, pinçou pontos de convergência modificados pelo tempo ou que já sucumbiram a ele


Ethel de Paula
da Redação

''Amanhã, se der o carneiro, carneiro/
Vou-me embora daqui pro Rio de Janeiro''

(Ednardo/Augusto Pontes)

Deu o carneiro. Em 1972, Ednardo pôs malas e canções no fusquinha que o levava à faculdade e ao bar do Anísio, na Beira-Mar, e desabou para o Rio de Janeiro. Cinco dias de viagem - corpo e embalagem. Era o início da carreira do cearense que cantou sua aldeia - Aldeota, prometendo voltar em revistas super-coloridas. Voltou. E em visita recente a Fortaleza, como convidado especial para as comemorações oficiais do aniversário da cidade-natal, reservou uma manhã para rastrear o chão que deixou para trás. Em foco, o início de tudo, tempo do artista em formação. Proposta original: rever lugares de estimação, deslocar-se ao sabor da memória, entre bairros. Idéia que a agenda cheia, tomada por horas de ensaio, compromissos familiares e show na Praça do Ferreira, inviabilizou. Dele, veio o meio-termo: toparia o passeio afetivo, mas o faria em pensamento, trajeto imaginário.
Assim, a manhã de conversa regada a uísque foi dar nas brincadeiras de menino no bairro Joaquim Távora, nas primeiras aulas de piano, nos cinemas-poeiras, nos bancos de faculdade, na Beira-Mar, nos pontos de convergência da turma de amigos que o Brasil conheceria como Pessoal do Ceará. Em duas horas de conversa, declarou, a seu modo, amor a Fortaleza, a quem dedicou ''Terral'', canção-hino.

         Ednardo no fusquinha viajando para o Rio de Janeiro 
                                                1972
PARQUE DA CRIANÇA - ''A gente morava vizinho, próximo à praça Coração de Jesus. Meu pai tinha um colégio, Ginásio Dom Bosco, e a gente morava no próprio colégio, meu pai era um workaholic radical. Trabalhava de manhã, de tarde, de noite e de madrugada. Professor Oscar Costa Sousa. Inclusive ensinou boa parte das pessoas que hoje estão em lugares de destaque. Então, era como se fosse meu jardim de brinquedo, quando queria brincar minha mãe, Maria Esther, me levava lá na Cidade da Criança, era assim que chamavam, embora o nome mesmo seja Parque da Liberdade, né? 
E quando você é criança as dimensões das coisas são enormes. Eu, pivetinho, no meio daquelas árvores todas. Inclusive, na Cidade da Criança tinha um curso de alfabetização de uma escola pública e lá eu estudava também. Juntava aquela molecada toda e pras professoras acharem a gente no meio daquele parque era uma dificuldade, quer dizer, naquele tempo a gente já cabulava as aulas (risos). 
Também íamos à Igreja Coração de Jesus, achava lindo aqueles cantos gregorianos, naquele tempo as missas eram todas em latim, não entendia bulhufas, mas a parte das músicas a gente curtia. Lembro que a igreja ficava num patamar muito alto e ao lado tinha uns paredões, onde a gente escorregava, não tinha fundo de calça que agüentasse (risos)'.

ESTRADA DE MESSEJANA/VISCONDE DO RIO BRANCO - ''Quando a escola da Praça Coração de Jesus ficou pequena para a demanda de alunos a gente se mudou para um prédio bem maior que ficava no bairro Joaquim Távora, na avenida Visconde do Rio Branco, 1924. Na época, era uma espécie de saída da cidade de Fortaleza para o interior. Chamavam também Estrada de Messejana. Ali era uma turma de molecada de rua. Tomava banho de chuva nas bocas de jacaré, brincava de ladrão e polícia... Numa dessas esquecemos muitos meninos amarrados em postes a cinco quarteirões de suas casas, já perto da Piedade (risos).
Mas a casa era tão grande que no quintal tinha goiaba, ata, coco, mangueira, sapoti... um campo de futebol, um campo de vôlei, outro de basquete, que meu pai mandou construir para os alunos fazerem esporte, então imagina o parque de diversão que tinha dentro da minha própria casa. A turma preferia brincar no meu quintal''.

PRAÇA CORAÇÃO DE JESUS - ''Na adolescência, já comecei a me interessar bem mais por música. A discoteca que meus pais tinham em casa de disco de cera era uma coisa maravilhosa. Tanto tinha música popular daquela época como clássicos, Bethoven, Chopin... Então, quando não estava estudando era escutando música.
Nas quermesses do colégio, festas de junho, eu era o discotecário, com aqueles circuitos de alto-falante, ninguém entendia nada porque era festa de São João e de repente tinha Cauby Peixoto cantando, Orlando Silva... aí pintava um clássico no meio, além, claro, de Luiz Gonzaga, Jackson do Pandeiro. Mas minha mãe, vendo que eu gostava de música, comprou um piano. Comecei a estudar entre 5, 6 anos até os 15, 16. Estudei piano clássico com as chamadas Irmãs Uchôa. Saía a pé, segundas, quartas e sextas, na parte da tarde, do Joaquim Távora até a Praça Coração de Jesus. E elas eram muito rigorosas, as golas fechadas até aqui, as saias quase arrastando no chão, e tinham umas unhas enormes e quando você errava, diziam: ''Meu filho, não é assim, é assim...' E enterravam aquelas unhas na nossa mão. Bicho, doía, viu? Outra coisa que não gostavam era quando eu fazia meus arranjos. Imagine pegar um Bethoven e ficar fazendo arranjo ali na hora... elas pegavam uma réguazinha e taco, taco, tá tudo errado!
Depois, falei pra minha mãe que gostava de piano mas queria tocar esse tipo de música que se ouvia no rádio. Foi quando ela me levou para um professor de piano de música popular brasileira que morava na Senador Pompeu. Na época era longe pra caramba. Pegava um ônibus e ia. O nome dele era Oscar Ribeiro, gente finíssima. Fumava o cigarrinho dele e dizia: 'vá tocando, meu filho'. Daqui a pouco pegava a radiola velha e colocava um disco. E 'vá tocando, meu filho, vá tocando'. Pra acostumar o ouvido, né?
Daí pra frente abandonei a partitura e tirava tudo de ouvido. Escutava muito rádio, meu pai tinha um com um olho mágico, que pegava ondas curtas, médias e tropicais. Comecei a escutar música americana, japonesa, tudo o que dava. Com 13, 14 anos, já comecei a fazer música minha, mas tinha vergonha de mostrar''.

TV CEARÁ - ''Em 1969 escutei pela Ceará Rádio Clube que havia um festival nordestino da música popular brasileira, promovido pelos Diários Associados. Botei uma música e fui classificado, em quarto lugar. O nome era ''Chapéu de Palha'' e falava sobre o êxodo do nordestino, ser uma espécie de ave de arribação. As três primeiras classificadas foram ''Bye, Bye Baião'', do Rodger Rogério e Dedé Evangelista; ''Boca de Forno'', da Tânia Araújo e outra bem romântica, que não tô lembrado.
No ano seguinte, coloquei quatro músicas no festival, todas as quatro foram classificadas. Ganhei primeiro, segundo, terceiro e quarto lugar. ''Beira-mar'' foi uma delas. Mas falei pro Augusto Borges que achava chato ir como representante único do Ceará. Aí ele convidou o Petrúcio Maia, com ''Pé de Sonhos'', que é dele e do Brandão, uma música belíssima e outra do Melé, compositor antigo dos Quatro Ases e um Curinga.
Nessa época, a gente tinha um programa semanal de televisão. Eu era diretor-artístico musical do programa do Augusto Borges e Belchior e Jorge Melo eram diretores-artísticos do programa do Gonzaga Vasconcelos. O do Augusto chamava-se ''Show do Mercantil'' e o do Gonzaga era ''Porque Hoje é Sábado''. Esses dois programas foram os grandes celeiros porque as pessoas tinham oportunidade de mostrar toda semana na televisão músicas inéditas pro Ceará todo''.

BEIRA-MAR - ''Era um lugar mais neutro. O liberou-geral. A gente fez uma platéia maravilhosa no bar do Anísio. O problema era quando começava a chegar gente demais numa época que a gente sabia que tinha uns olheiros. Um ponto de aglutinação de artistas, intelectuais, pessoal da Universidade... de repente a mesa começava a crescer pra cacete, aí o Augusto Pontes se levantava, grande e querido parceiro, e dizia: ''quando a mesa cresce, a cultura desaparece''. Era a deixa pra todo mundo capar o gato.
O Anísio era ascensorista do prédio Diogo. E a gente tocando violão e fazendo música lá até o dia amanhecer. Ele ficava cochilando. E, quando acordava, dava palpites nas músicas. Dizia: ''Essa eu não gostei...'. Ou então: ''Essa daí é legal, essa você pode gravar, meu filho, que vai ser sucesso''. Fizemos muitas canções lá.
Mas, curiosamente, ''Beira-Mar'' fiz trabalhando na Petrobrás, noite de carnaval, eu fazendo turno da madrugada. Minha namorada, na época, Marta Pinheiro, reclamava: ''Pô, você vive trabalhando, quando não está estudando, na televisão...'. Quer dizer, quase não comparecia! Aí disse: ''Mas vou fazer uma música pra você''. Essa música inclusive fala mais ou menos isso aí: ''Na Beira-Mar, entre luzes que lhe escondem, só sorrisos me respondem que eu me perco de você...'. Ou seja, foi pra tirar uma suja (risos).
Mas ''Carneiro'' foi feita no Bar do Anísio. Chega Augusto Pontes com umas cinco ou seis páginas datilografadas. Eu tinha falado que estava indo pro Rio. E ele me trouxe a letra: ''Amanhã se der o carneiro vou embora daqui pro Rio de Janeiro''. Depois tinha um monte de coisa que não tinha nada a ver. Algo como: ''vou botar a fotografia dessa mulher no registro lá de casa'' (risos). Porque os registros de luz tinham um vidrinho pra ver o consumo. E a turma botava umas fotografias de mulher nua, outros colocavam imagens de santos. Mas imagine eu cantar uma música quilométrica. Aí fomos eu e ele recompondo, criação instantânea, pegando o mote inicial e um respondendo o outro. Outra que a gente fez lá foi ''Alazão'', minha e do Brandão''.

DUNAS - ''Eu só tinha um sábado e um domingo de folga e tinha mania de pegar meu fusquinha e sair passeando de madrugada pelo centro de Fortaleza, Beira Mar, Mucuripe... ir lá pro Hotel das Estrelas, nesse caso acompanhado, namorando, é lógico. Você sabe? Ali onde tinha o restaurante Sandra's, nas dunas. Tinha um caminhozinho, a gente subia, subia, subia aí chegava pertinho das estrelas... Ô coisa boa, querida, fazia-se de tudo sem ninguém ser incomodado. As namoradas adoravam (risos)'.

CINE DIOGO - ''O cinema, diria, foi o primeiro motivo que me levou a fazer música. Em Fortaleza, na época da adolescência eu ia muito a filme, e tinha o seguinte detalhe: em cada bairro tinha três, quatro salas de exibição. Hoje você não vê mais, migraram para os shoppings-centers. Haviam cinemas nos bairros, os pulgueiros, pulgueiros dos bons, a platéia ficava torcendo, o pessoal aplaudia, olha que loucura! Perto lá de casa tinha o cine Joaquim Távora, o cine Atapú... Andava até o Centro tinha o Samburá, o Jangada. O cine Ventura, perto da Praça Christo Rei. Aí tinha o Cine Diogo, onde aos sábados havia o cinema de arte. Era outro ponto onde a gente se encontrava, principalmente o pessoal que gostava de cinema. Aqueles franceses, Nouvelle Vague, cada coisa chata pra cacete, mas a gente assistia porque... faz parte, é cult (risos).
E o interessante nos cinemas de bairro é que não passava o mesmo filme nas salas. Então você tinha a opção de assistir a vários filmes em um só dia. E antes, via os seriados. Mas a minha maior emoção foi quando da inauguração do cine São Luís. Você não sabe como foi chique aquele negócio. Eu assisti a ''Anastácia''. Aí chegava em casa e tentava reproduzir ao piano a trilha musical que havia ouvido lá. Eu não perdia uma chanchada da Atlântida. E cinema pra mim sempre foi essa mágica.
Então, foi uma felicidade vir a fazer trilha mais tarde. A primeira que fiz foi a do filme Tigipió, de um cineasta cearense, Pedro Jorge de Castro. Aí, ao ver esse filme, o Luís Carlos Barreto me convidou para fazer a trilha de Luzia Homem, dirigido pelo filho dele, Fábio Barreto. Passei uns sete a oito meses trabalhando nisso. E ainda fiz uma ponta como ator. Meu personagem era um poeta de cordel. Mas achei que meu texto estava muito pobre. Sou abusado, viu? Aí misturei Nietzsche, Fernando Pessoa, os cantadores e fiz um mix. Os dois leram e aprovaram.
Só que ainda teve um detalhe: quando cheguei no set de filmagem, a figurinista, morando no eixo São Paulo-Rio, imaginou que um cantador do Nordeste tinha que andar todo rasgado, pé no chão... Falei: ''Minha querida, você não conhece o Nordeste nem os cantadores de cordel. O cara pode ter só uma roupa, mas é nos trinques. Ele se perfuma, o instrumento é o melhor que pode ter, a roupinha bem engomadinha...'. Me recusei, joguei no mato o figurino dela e gravei com minha própria roupa, tinha comprado na Beira Mar, calça de algodão com teares nordestinos e uma camisa de linho riscado. Não ia deixar me vestirem de uma maneira desrespeitosa. Pra cima de muá não, cherry''.

UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ - ''Tinha ali os Institutos Básicos de Química, Física e Matemática. Na frente, a escola de arquitetura, depois a escola de engenharia química, a escola de filosofia. E todas essas pessoas que convencionaram chamar de Pessoal do Ceará estavam por ali. Era Rodger (Rogério) de um lado, Augusto Pontes do outro, Petrúcio Maia, Fausto Nilo, Brandão, Pepe Campelo. Enfim, para onde você se virava tinha gente interessada na música, na poesia, na literatura. Era um pólo aglutinador e houve um alinhamento de astros, né?
Tinha terminado o curso científico, passado pra engenharia química e já tinha entrado para a Petrobrás, com 19 anos. Então, fazia faculdade, trabalhava na Petrobrás, onde tinha que cumprir oito horas, e dirigia o Show do Mercantil. Meu tempo era cronometrado. Saí da Petrobrás quando me mandaram cortar o cabelo, uma censura velada. Quando eu trocava o turno para fazer um programa musical - todo mundo trocava -, no outro dia vinha uma suspensão pra mim. Era uma forma de, entre aspas, censurar um outro lado da minha existência. Foi quando resolvi ficar só com música.
Minha mãe quase sobe pelas paredes. Mas meu pai entendeu que o melhor é fazer o que se gosta. Peguei corda e decidi fazer meu show de despedida em Fortaleza. Me lembro bem que foi na boate Barbarela, do Américo Picanço. Foi lindo esse show, cara... Na outra semana peguei meu fusquinha, sozinho, botei minha malinha, meu violão, minhas letras de música dentro e... foram cinco dias de viagem, estrada péssima, dormindo na beira da estrada, até o Rio de Janeiro. Isso foi em 1972. Mas, juro por Deus, faria a mesma coisa hoje''.

 

EDNARDO
Na asa do vento

Ele faz parte de uma geração - o Pessoal do Ceará - que expandiu a música pop cearense para o Brasil inteiro. Além de ter um trabalho solo consistente, Ednardo também é responsável por outro momento marcante na cena cultural dos anos 80, o show-álbum duplo Massafeira

Eleuda de Carvalho
da Redação


Nada melhor do que a música para expandir a consciência. Mais eficaz que um discurso, mais rápida que a leitura de um livro, é a mais democrática das manifestações artísticas. Muitos dos garotos e garotas dos anos 70 ouviram falar da Padaria Espiritual e da Confederação do Equador a partir de algumas composições de Ednardo. Foi ele também o responsável por fazer o Brasil inteiro ouvir e cantar um romance de cordel sob o batuque lento do maracatu, com ''Pavão Mysteriozo''. Sozinho ou com os muitos parceiros, Ednardo incorporou ao repertório pop brasileiro - muito antes de caranguejos cerebrados cantarem a manguetown - os ritmos coletivos do povo nordestino, os bois, as cirandas, uma infinidade de maracatus. Renovou o baião e o aboio, com sua singularíssima voz. E ele continua a encantar as novas gerações.


Ednardo
 Divulgação - (By Regis -1987)

Também produtor musical e ligado em cinema, Ednardo é autor do documentário Cauim, também nome de um disco seu. Ele próprio fez o personagem de um cantador no filme Luzia-Homem, de Fábio Barreto. Mas o feito mais emblemático da trajetória deste ariano, nascido há exatos 60 anos nesta cidade de Fortaleza, foi o coletivo Massafeira, quatro dias de sonho e festa no vetusto Theatro José de Alencar, de 15 a 18 de março de 1979, do qual nasceu, um ano depois, o álbum duplo com 24 composições, unindo diversos artistas cearenses. Foi a primeira vez que eu vi, junto com os belos cabeludos da cena musical local, a beleza ímpar de um homenzinho meio cego, vestido numa camisa de volta-ao-mundo, recitando sua visceral poesia ao vivo. Patativa do Assaré.

Nesta conversa feita por e-mail e em duas partes (no meio, Ednardo voltou rapidamente à cidade para fazer, junto com Belchior, o show de aniversário de Fortaleza), ele conta a sua trajetória sonora. Desde os festivais locais que revelaram sua geração, o impacto da canção ''Pavão Mysteriozo'', os programas de tevê entre Rio e São Paulo, a Massafeira, os parceiros, os amigos, os percalços. Os sonhos e desesperanças. E seu amor incondicional ao Brasil.

O POVO - Queria começar no meio do caminho. Vamos marcar este antes e depois com a canção que, penso, significou também uma guinada na sua trajetória. Estou falando do ''Pavão Mysteriozo''. Em que circunstâncias você criou esta música, como foi a primeira recepção à marcação solene da batida do maracatu numa canção popular? O que aconteceu com o disco e sua carreira quando o ''Pavão'' foi tema de abertura da novela Saramandaia?

Ednardo - Havíamos gravado o primeiro disco, Pessoal do Ceará - Ednardo, Teti, Rodger Rogério -, e a música de sucesso público foi ''Terral'', a primeira dessa geração que alcançou nível nacional e internacional. Fiquei feliz é claro, e também angustiado, porque nosso projeto era fazermos shows juntos, mas a maior parte dos convites que chegavam de tevês, rádios e shows pedia somente minha apresentação. Cheguei a recusar apresentações, se não fossem os três.
A situação era difícil porque havia a necessidade real de trabalhar para poder pagar minha própria subsistência básica, o Rodger tinha emprego de professor de Física na Universidade de São Paulo (USP), tempo integral, que garantia ele e família, e a Teti, mesmo com vontade de desenvolver carreira artística, ficava em casa com os filhos do casal. E eu ficava rolando entre Rio e São Paulo, morando de favor na casa de uns e de outros. O parceiro Rodger até pensou em sair da universidade e se dedicar somente à música, Teti foi contra, temia não dar certo.
Na época dos três renovarem contrato na Continental, a gerência, com a objetividade dos homens de negócios, disse só se interessar em renovar meu contrato. Isso foi a gota d'água e pedi para sair da gravadora, junto com Rodger e Teti. Tempos depois, eu estava gravando O Romance do Pavão Mysteriozo na RCA, e Rodger e Teti gravando Chão Sagrado na mesma gravadora.
Inicialmente não aconteceu nada com os discos. Achavam estranhas nossas letras, músicas, ritmos. O produtor Walter Silva disse: ''O pessoal da gravadora não está gostando das músicas e principalmente deste 'Pavão Mysteriozo', com ritmo não conhecido e com palavras não usuais para o grande público mas, justamente por isso, acho que vai ser um grande sucesso''. Esperei dois anos para ver concretizado este fato que o Walter Silva falou, realizado por Walter Avancini e Dias Gomes, que escolheram esta música para abertura de Saramandaia. Foram anos de espera e dificuldades, e meus companheiros Rodger e Teti não agüentaram, e se mandaram pra Fortaleza.


OP - E você, quando foi que saiu de Fortaleza e se radicou no Rio? Como foi esta viagem, esta mudança? Bateu uma vontade de voltar?

Ednardo - Saí de Fortaleza em 72. Antes, entre 69 e 70, fui ao Rio de Janeiro, passei pela Bahia, sondando ambientes, espaços onde minha música pudesse ecoar. Quando cheguei ao Rio, não conhecia absolutamente ninguém da área musical. Saí de Fortaleza dirigindo um fusquinha, com a cara e a coragem, ô estrada comprida, uns cinco dias pra chegar, mas eu estava com meus sonhos, e a vontade inabalável de fazer alguma coisa.
Lembro com carinho da carta que o amigo Guilherme Neto da TV Ceará fez quando soube que eu estava indo pro Rio, era uma apresentação a um amigo dele. Nem procurei a pessoa indicada, por absoluta timidez. O parceiro Belchior estava há alguns meses no Sudeste, vez por outra enviava cartas contando a dureza da grande cidade. ''Ednardo, vem que juntos podemos fazer muitas coisas, sozinho é difícil. Vem e traz alguma grana para os primeiros tempos. Juntei as economias para gastar só nos maus dias e gasto hoje afinal''.
Não tem glamour nas dificuldades iniciais, todas são definitivas na decisão de ficar ou voltar, quando não temos por perto amigos, amigas, família. Quando estamos sós, quando se olha pro oco do mundo e nada do mundo olha pra você... O baque que sentimos é considerável, só os fortes resistem. Residi sete anos em São Paulo, grande parte em viagens entre Rio-São Paulo. Depois, voltei a Fortaleza, onde residi por quatro, cinco anos. Em 1985 fui de novo para o Rio, onde fixei residência e permaneço.
Quanto ao lance de bater vontade de voltar, é característica quase atávica do cearense, que viaja ou mora pelo mundo. É retratado por Gustavo Barroso no ''Hino de Fortaleza'', em parceria com Antônio Gondim: ''Onde quer que teus filhos estejam,/ na nobreza ou riqueza sem par,/ com amor e saudades, desejam/ ao teu seio o mais breve voltar./ Porque o verde do mar que retrata/ o teu clima de eterno verão/ e o luar nas areias de prata/ não se apagam nos seus corações''.


OP - Aí pelos meados da década de 70, surgia com força toda uma geração vinda do Nordeste, o pessoal do Pernambuco, o Pessoal do Ceará. Havia um ponto de encontro onde a turma nordestina se encontrava? Rolava algum tipo de discussão ou projeto coletivo? Ou cada um estava tentando se firmar e prevaleciam as individualidades?

Ednardo - As pessoas chegaram ao eixo Sudeste no início da década de 70, ''vindas daqui e dali, de todo lugar que se tem pra partir'', como diz Edu Lobo, mas quando a gente chega à outra grande cidade, saindo, naquele tempo, de nossas províncias, a realidade é outra, o espaço físico das metrópoles, a arquitetura existencial de relacionamentos é diferente. Existia também a ditadura militar, que considerava reuniões e ajuntamentos sistemáticos de qualquer espécie de gente como perigo iminente e potencial contra o regime implantado.
A gente andava em grupos como forma de proteção mútua, mas não existiam pontos de encontros determinados, saíamos pela noite de São Paulo, e aconteciam encontros inusitados. Nossa casa (chamamos de nossa por afetividade ao local que nos abrigou durante algum tempo), na realidade emprestada por alguns meses a Belchior pelo cineasta Mário Kuperman, enquanto era demolida, era o ponto de encontro dos cearenses: rua Oscar Freire, 1500, Pinheiros, São Paulo.
O programa Mixturação, da TV Record, gravado semanalmente no Teatro Record - na rua Augusta, e depois o Mambembe da TV Bandeirantes, gravado no Teatro Paramount, ambos dirigidos por Walter Silva, também eram pontos naturais de encontros. Chegávamos de manhã e os ensaios e gravações demoravam bastante, então a gente aproveitava para colocar a conversa em dia.
Participaram destes programas o Pessoal do Ceará (eu, Rodger, Teti, Belchior, Cirino, Pequim, Jorge Mello), os Novos Baianos, o Grupo Capote, Simone, Paulinho Nogueira, os irmãos Clôdo, Climério e Clésio (dos quais produzi o primeiro disco São Piauí, na RCA), Walter Franco, Secos & Molhados (Ney Matogrosso regravou ''Pavão Mysteriozo''), Marcus Vinícius e Anah, Renato Teixeira, enfim era muita gente. Mas não havia o ambiente que tínhamos em Fortaleza, no Bar do Anísio ou Estoril.


OP - Sua música sempre esteve muito afinada com os temas de Fortaleza, do Ceará, do Nordeste. Tanto nas letras quanto nos ritmos. Mas você compôs também a linda ''Serenata pra Brazilha'', tem ''Carneiro'' - com letra do Augusto Pontes, que fala desse sonho de ir-se embora, tem ''Araguaia''...

Ednardo - Fortaleza e todo o Ceará são meus pontos principais de referência, são coordenadas existenciais queridas, das quais não abro mão.
Mas isto não impede que, por tanto viajar por todo este Brasil, eu me sinta também à vontade em outros lugares.
Gosto muito do Rio de Janeiro e São Paulo, da Bahia e Rio Grande do Sul, do Piauí, Brasília, Belém, Maranhão, Pernambuco... Isto não é uma média de simpatia, me identifico mesmo com este sentimento de brasilidade que emana desta pluralidade de pessoas, do nosso jeito de ser tão amplo. Tenho consciência que falo bastante do Ceará, desta sintonia nordestina, mas também aprendo tanto com outras paisagens e habitantes, que seria desperdício não me permitir emocionar e eivar o esteio principal da criatividade ao fazer este mapeamento sonoro rítmico com palavras que me aproximem daquilo que também prezo em ser: um cidadão do mundo.


OP - Queria que você falasse do primeiro disco, Pessoal do Ceará, com Rodger e Teti (também intitulado Meu corpo, minha embalagem, todo gasto na viagem). De quem foi a idéia da capa, com aqueles bilros, as mãos da rendeira?

Ednardo - Conheci Rodger e Augusto Pontes no I Festival Nordestino da Música Popular Brasileira, em Fortaleza - 68/69. Eu havia apresentado a música ''Chapéu de Palha'' (Ednardo), e o Rodger a música ''Bye Bye Baião'' (Rodger / Dedé). Estava assistindo outros artistas, quando chega Augusto e diz: ''Boa noite, meu nome é Augusto Pontes, esse aqui é o Rodger. Gostei de sua música e Rodger também. Você faz Química, o Rodger faz Física, eu faço Filosofia, e estamos todos ali na UFC, a gente podia se encontrar''. Conversamos rapidamente ao lado do palco do clube Náutico e depois nos encontramos na cantina da Universidade, estava muito barulhento e resolvemos ir pra um barzinho que existia em rua próxima. Tinha um violão por lá, começamos a tocar e cantar algumas músicas. Depois fomos fazer uma visita ao Diretório Acadêmico da Escola de Arquitetura, que ficava quase em frente, lá encontramos: Brandão, Fausto Nilo, Pepe Capelo. Então foi se formando nossa turma boa.

OP - Como surgiu o projeto Massafeira, juntar aquela turma toda, todas as artes, em quatro memoráveis dias de março de 1979...

Ednardo - Penso que o início mesmo da Massafeira é quando, em 78, realizei o show de lançamento do disco e filme Cauim, todo filmado em Fortaleza sobre maracatus, Confederação do Equador e outros assuntos mais, numa espécie de documentário-ficção.
Para este show havia convidado como participantes especiais os parceiros Dominguinhos e Climério, para cantarmos juntos e lançarmos o livro do Brandão (Todas as Noites), que eu havia editado, e dois livros do Climério. Brandão havia feito a arte da capa do disco Cauim, e solicitei que ele realizasse o layout de palco do show. Em minha concepção, o filme seria projetado em rede branca estendida como tela, entre bandeiras de várias cores, no meio do espetáculo. O Brandão gostou da idéia e começamos a trabalhar, tinha convidado Régis e Rogério Soares para realizarem a parte da projeção do filme. Eles, na reunião, entre tímidos e sonhadores, falaram que seria legal se também artistas iniciantes se apresentassem para abrir o show. Ponderamos que seria inviável em termo de tempo, mas achávamos uma boa idéia que poderíamos ampliar depois.
Que ampliação foi esta que, ao chegarmos para a passagem de som e luz, já estavam no TJA mais de 30 pessoas, dos mais jovens e promissores talentos da novíssima geração musical, que acompanharam toda a montagem, subiram no palco, em suma, uma demonstração inequívoca de suas boas vontades de participarem. Também antes da hora do show e após, a quantidade de visitas ao camarim foi muito grande e todos eles e elas estavam por lá.
O grande fotógrafo Gentil Barreira, contratado por nossa produção, registrou desde a montagem deste lançamento de Cauim à realização do show. Então foi a constatação que poderíamos realizar a união de várias gerações artísticas em um movimento abrangente, de várias formas de artes. E nasceu a Massafeira.


OP - Bem, e depois, teve o disco duplo, lançado em 1980. Como foi levar a galera toda pra gravar no Rio?

Ednardo - Momento sem precedentes na história da indústria fonográfica brasileira. Jairo Pires, então diretor geral da CBS, veio especialmente para assistir Massafeira no Theatro José de Alencar, ficou impressionado, me chamou e disse que autorizava um disco com alguns artistas. Ponderei que um disco seria pouco, diante da diversidade e importância do que estava rolando. Para transportar uma parte da energia e clima artístico, seria necessário muitas outras pessoas.
Em Fortaleza não havia estúdio de gravação com qualidade técnica, e para isso tivemos que ir de avião e de ônibus para o Rio, ficamos hospedados no Hotel Santa Tereza. Em dois meses de trabalho titânico, realizamos três discos com minha produção artística e direção, o álbum Ednardo e o álbum duplo da Massafeira. Além disso, em março, gravamos e filmamos ao vivo Patativa do Assaré se apresentando na Massafeira.


OP - Lembro de vê-lo, um dia, no Estoril, numa noite aí pelos idos de 80. Você, sua mulher e uma menina de imensos olhos cor do mar, sua filha Joana Limaverde (atriz). Fale um pouco de sua família e do lance de ser avô.

Ednardo - Do final de 79 ao início de 83, por causa da Massafeira, eu e minha família residimos em Fortaleza. Minha querida mulher guerreira Rosane me acompanhou nestas mudanças de cidades. De São Paulo, onde residíamos desde 72, voltamos para Fortaleza em 79, e retornamos ao sudeste em 83, desta vez para o Rio de Janeiro. Enquanto isso, os filhos e filhas foram nascendo, Joana, em São Paulo, Gabriel e Júlia, em Fortaleza, Daniel, no Rio de Janeiro. Com alegria vamos vendo todos crescerem, e a continuidade representada pela nova geração é sempre benvinda. 

 

Na terra é pleno abril!

Pedro Rogério
Especial para O POVO

 

Fortaleza e Ednardo são indissociáveis. Acordes musicais e poesias alencarinamente claros confirmam as comemorações natalícias de mãe e filho. Amamentado pelo leite nordestino de praias e sertões, passando pelo asfalto que acolhe os desfiles dos maracatus, sua obra capta, cria e recria influências multiculturais. Assim faz vibrar o mote que Antônio Martins Filho escolheu como guia da Universidade Federal do Ceará: O universal pelo regional.

Ednardo faz parte da turma do ''Pessoal do Ceará'' cujo único rótulo em que poderia se encaixar seria o de não ter rótulo. Desencaixado, o Pessoal não cabe em fôrmas. A liberdade era o som que ecoava encontrando ressonâncias em todo o País e no resto do mundo com os movimentos estudantis da década de 60, os protestos contra a guerra do Vietnã, os movimentos feministas, tudo caracterizando uma contracultura.


 Belchior e Ednardo
Show Centro Dragão do Mar
Fortaleza 
(By Antonio Duarte 19/08/1998)

A expressão ''Pessoal do Ceará'', que batizou toda essa geração de artistas e intelectuais, era o subtítulo do disco Meu Corpo Minha Embalagem Todo Gasto na Viagem (1973) que reuniu Ednardo a seus irmãos de arte Rodger de Rogério e Téti, obra considerada por vários pesquisadores como um marco na música cearense.

O ambiente universitário deu a Ednardo e a seus pares uma clareza política capaz de se subverter o racionalismo que aprisionou muita gente nos birôs da burocracia - eles não puderam voar. Mas o compositor de ''Pavão Mysteriozo'' (gravado em 1974) se lançou num vôo muito alto. É um artista que tem consciência do poder de transcendência da arte, em especial em tempos de ditadura militar, que ousou perseverar no amor à sua terra natal.

''Terral'' e ''Beira-Mar'' - ambas composições de Ednardo - duas das músicas que se destacaram no disco-marco Pessoal do Ceará, são verdadeiros hinos, composições de um assumido apaixonado que, como um filho que precisa provar a sinceridade de seus sentimentos, declara seu amor à cidade-mãe ao mesmo tempo em que, sentindo que já está maduro o bastante, deixa-se seduzir por outras mulheres, outras cidades, sem jamais se desvincular do útero materno.

O laborioso padeiro realimenta o desejo de liberdade lançando o disco Berro em 1976. Sem esquecer da trilogia égalité, fraternité e liberté o segundo princípio iluminista aflora com todo o brilho em seu trabalho por ocasião da gravação do álbum duplo Massafeira, do qual se encarregou da direção artística de produção e estúdio. ''Som, imagem, movimento, gente'' registrado na capa do álbum, confirma o saudável rebuliço que reuniu vinte e quatro faixas. A caravana de artistas lotou o Hotel Santa Tereza no Rio de Janeiro em 1979/80 e aproximou várias gerações. Foram mais de trezentos artistas, entre outros lembramos dos nomes de Ângela Linhares, Lúcio Ricardo, Ana Fonteles, Zezé Fonteles, Mona Gadelha, Calé Alencar, Graco, Caio Silvio, Tânia Cabral, Téti, Marta Lopes, Rodger de Rogério, Fagner, Belchior, Pachelli Jamacarú, Sergio Pinheiro, Alano de Freitas, Stélio Valle, Francisco Casa Verde (Ferreirinha), Regis Soares, Rogério Soares, Ricardo Bezerra, Tazo Costa, Patativa do Assaré, Petrúcio Maia, Fausto Nilo, Zé Maia, Eugênio Stone, Luiz Carlos Pinoquio, Vicente Lopes, Nertan Alencar, Chico Pio e Brandão.

A obra de Ednardo, que é merecedora de todo reconhecimento público, cativou e cativa pela coerência e sinceridade de propósitos atraindo admiradores dentre os quais tenho a honra de ser filiado. São mais de trezentas músicas, também gravadas por mais de cinqüenta outros intérpretes, distribuídas em quinze discos, nove compilações, duas trilhas para teatro e quatro para cinema. Uma vasta produção que não se divorciou da qualidade renovada pelo espírito criativo do artista.

Sotaque cearense cosmopolita, cidadão do mundo, habitante do universo, artista atemporal e sem limite espacial. O dia 17 de abril nos chega como uma coda (confirmação da tonalidade de uma música) do aniversário da cidade de Fortaleza - dia 13 de abril. Abril que é o mês da verdade e da sinceridade características desses que nascem sob signo do carneiro. Augusto Pontes - considerado guru do Pessoal e autor daquela frase menos conhecida que é na verdade o título do disco: Meu Corpo Minha Embalagem Todo Gasto na Viagem - como todos já sabem, estava certo, deu o carneiro, Ednardo foi embora daqui pro Rio de Janeiro sendo que nunca saiu daqui.

Em tempo: além do poder criativo de Ednardo é bom lembrar da delicadeza e força interpretativa de músicas antológicas como ''Dorothy L'amour'' de Petrúcio Maia e Fausto Nilo; ''Lupiscínica'' também de Petrúcio Maia em parceria com Augusto Pontes; só para citar dois grandes boleros que se imortalizaram na voz do aniversariante.

Pedro Rogério é músico, radialista e mestrando em Educação na UFC, desenvolvendo uma pesquisa sobre o Pessoal do Ceará 

 


EDNARDO
O mais tropicalista

''Essa coisa de aparecer em grupo, como Pessoal do Ceará, tem o lado positivo por facilitar o reconhecimento na mídia,
é benéfico pelo lado clichê da 'união faz a força'


Luciano Almeida Filho
da Redação

Se o nome de Ednardo só vem à cabeça do grande público brasileiro quando se lembra de ''Pavão Mysteriozo'', que o levou a aparecer em videoteipe e revistas multicoloridas, para a crítica especializada, o talento do cantor e compositor cearense é referencial dentro da geração de artistas nordestinos que migraram para o Sudeste nos anos 70 e deram uma nova cara à música popular brasileira de então. ''Ele apareceu naquela leva de pernambucanos, cearenses e paraibanos que eletrificou a música dos antecessores - Luiz Gonzaga, Jackson do Pandeiro e João do Vale - e trouxe referências do pop, do rock, veio com a coisa da guitarra'', lembra o jornalista Tárik de Souza, autor do livro O Som Nosso de Cada Dia (L&PM) e coordenador da coleção Ouvido Musical, da Editora 34

 

Belchior Fagner, Ednardo
Show Praça do Ferreira, Fortaleza
(By José Leomar 28/11/1997)

 

''Essa coisa de aparecer em grupo, como Pessoal do Ceará, tem o lado positivo por facilitar o reconhecimento na mídia, é benéfico pelo lado clichê da 'união faz a força'. Mas de certa forma apaga diferenças. Neste sentido, Ednardo foi o mais prejudicado porque tinha um trabalho diferenciado, com uma diversidade de referências maior que seus companheiros de geração, com uma música bem mais rica que Fagner e Belchior. Acredito que maior até que Alceu Valença, se formos pensar dos outros nordestinos da mesma leva'', aponta o jornalista Antonio Carlos Miguel, crítico de música do jornal O Globo. Ele cita em especial o LP Cauim (1978) como referencial dentro da produção do cearense. Antonio Carlos inclusive escreveu o release de lançamento do LP Ednardo (1983), distribuído à imprensa na época, a convite da equipe da gravadora Odeon (hoje EMI). ''Também era um disco muito forte, que tinha 'Super X', 'Rockcordel' e 'Papai mamãe' '', lembra-se.

Para Tárik, Ednardo pode ser considerado o ''mais tropicalista do grupo dos nordestinos'', justamente pela grande diversidade de referências e uma musicalidade inquieta e inovadora. Uma afirmação com a qual concorda Antonio Carlos Miguel: ''ele tinha um lado experimental que o aproxima mais dos tropicalistas''. ''Talvez porque sua música não tinha um foco padrão, ele não teve o sucesso merecido, porque o mercado exige esta padronização. Aqui no Sudeste, praticamente só se lembra dele por conta de 'Pavão Mysteriozo', que fez sucesso dois anos depois de ter sido lançada e ter tido a sorte de ser escolhida para abertura da novela Saramandaia, que foi muito marcante. Mas só. Ele hoje está praticamente desaparecido da mídia. E seu trabalho merecia ter uma maior visibilidade'', aponta Tárik.

Crítico de música do Jornal do Commercio, o jornalista José Teles lamenta que Ednardo tenha ''desaparecido''. Depois de um relativo ostracismo nos anos 90, em que lançou apenas um único disco, Ednardo só voltou à mídia nacional em 2000, com o CD Única Pessoa, em que interpretou composições de autores como Chico Buarque, Antonio Cícero, Milton Nascimento, Chico Pio, Lauro Maia e Humberto Teixeira. No disco, a única composição de Ednardo foi a faixa-título, assinada em parceria com Chico César. Dois anos depois, saiu a segunda versão do disco Pessoal do Ceará, em que Ednardo dividia o canto com Amelinha e Belchior.

''A gente ouvia muito Ednardo aqui em Recife, no final dos anos 70 e início dos 80. Era uma referência. Mas com o surgimento dessa coisa do rock nacional, ele sumiu. Não sei se porque andou brigando com as gravadoras, se passou a produzir menos... não sei exatamente porque. Mas Ednardo merece ter uma visibilidade maior'', declara o pernambucano, autor do livro Do Frevo ao Mangue Beat (Ouvido Musical/ Editora 34).

 

ARTIGO
Por um berro cearense

Em trechos de um longo ensaio publicado originalmente na Revista de Comunicação Social da UFC, em 1984, e gentilmente cedidos ao O POVO, o professor e jornalista Gilmar de Carvalho fala do cantar cearense na obra de Ednardo e destaca a radicalidade e a coerência na trajetória do compositor

Gilmar de Carvalho
Especial para O POVO

 

Somos um povo que canta, muitas vezes sem razões aparentes para a alegria. A canção estaria na palma dos coqueiros, no vento soprando os grãos de areia das dunas, no mar quebrando nas praias paradisíacas, no cenário clichê que se contrapõe às secas, à aspereza do espinho, à terra crestada pelo sol. O aboio, a incelença, o bendito, o repente, o coco são manifestações de cantares, as várias vertentes a que se associam as propostas de nossos compositores, os nossos cantores num sentido mais amplo e mais próprio, visto que são eles que elaboram e dão forma ao mote que é cantar.

Existiria um cantar cearense? Um canto com sotaque que refletisse e digerisse todas estas influências ''folk'', telúricas e expressasse um jeito peculiar de ver/sentir/falar do mundo? O propósito de aprofundar esta questão nos levou a Ednardo, estuário urbano e cosmopolita de todas estas influências. Dentre todos os discursos dos compositores populares cearenses, o dele é o mais rico para uma dissecação com a finalidade de encontrar e pinçar traços do que seria um cantar cearense. (...)

Ednardo não é um astro da canção cearense, esquema ao qual ele nunca esteve ligado, mas um operário, um artesão, recolocando a questão das ''antenas da raça'' de que falava Pound, aqui num contexto realmente de emissão, sintonia, captação. (...) O cantar, pra Ednardo, por exemplo, é
vital.


Cartaz  Massafeira 1979 - By Brandão

A irresponsabilidade boêmia é um simpático referencial do passado, sufocada diante do marketing das gravadoras e do papel que estes novos compositores assumiram com seu canto.

Pinçar esse compromisso em Ednardo é tarefa que começa com o primeiro disco e que vai num crescendo de metalinguagem, com a música discutindo a própria música. ''Só o meu grito nega aos quatro ventos a verdade que eu não quero ver'', declara em ''Beira-Mar'', para concluir com um pungente ''vai calando a voz mais rouca, sem mais nada pra dizer''.

No elepê de estréia (Pessoal do Ceará) tinha a força de uma declaração de princípios ou de fé. Em ''Terral'', ele se dizia ''batendo na porta pra lhe aperrear''. Era um jeito cearense de dizer que estava chegando e que tinha alguma coisa pra dizer ou mostrar. No ''Pavão Mysteriozo'', a retomada do mesmo tom: ''se eu voasse assim/ tantos céus assim/ muita história eu tinha/ pra contar''. A preocupação com o popular em ''Varal'', numa ampliação do canto popular numa dimensão ampla, ''no vento a voz da rua''. Mas em ''Ausência'', o mergulho se faz mais profundo: ''e eu mostrava a ti uma cantiga, uma cantiga antiga do lugar''. Só que a canção era nova e nova também sua postura diante dos desafios e compromisso do artista numa fase de sufoco e de metáforas, o período Médici.

Berro radicaliza este discurso. Berrar se confunde com o cantar: ''do boi se só perde o berro/ e é justamente o que eu vim apresentar''. Ou a irônica visão do papel do artista ao se projetar ''sentados num banquinho alto/ microfone e violão/ quilografados comportadamente/ somos umas vacas''. E que ele leva adiante ao tocar no eterno antagonismo entre ''os novo/ os novos/ corações aos pulos/ as novas/ as novas transações e susto'' e ''as velhas coisas/ as velhas coisas/ pelancas ossos quem quer''. Onde ''as velhas câmeras não fotografam minha emoção'' e a velha chave não é capaz de compreender a novidade e instigação de sua proposta.

Em ''Abertura'', a bicharada ''toda do terreiro/ já tem outra maneira de cantar'', porque ''alguém colocou/ um novo ingrediente na ração/ e no pacato terreiro/ formou-se enorme confusão''. Na antológica ''Longarinas'', a resistência de uma atitude aliada à impotência de mudar: ''só meu mote não muda a moda/ não muda nada''. No conceitual Azul e Encarnado, o desafio: ''se arme de amor e coragem/ que a minh'arma eu nuca embainho'' (''Está escrito''). Mais explicitado em ''Pastora do Tempo'', onde as palavras ''são como pombos-correios/ mas estão sempre atrasados/ pois o seu vôo é lento/ e o meu pensamento é ligeiro''. (...)

''Cantar parece com não morrer'' é a conclusão a que chegou em ''Enquanto engoma a calça'', parceria com o piauiense Climério. Mas a agressividade do canto cortante está na ''faca sobre a mesa corta/ como te cortam os meus versos'', da letra do ''Torpor''. (...) O discurso sobre o cantar revela um Ednardo ansioso, agressivo, enraizado, ao nível urbano e bem informado de um violeiro que recusa a facilidade do estereótipo da cultura popular e busca um sentido e uma orientação para sua proposta de criação artística. (...)

A tentativa de resgatar o cearense de sua proposta musical é uma reflexão sobre a questão das raízes em relação à industria cultural, quando o sotaque pode ser amplificado e perder qualquer ranço menor, de bairrismo e quando este compromisso com as referências culturais se dissocia de posições tradicionais ou folclóricas. ''Quais quixotes, quais chicotes a estalar nossos momentos'', Ednardo subverte as regras do jogo, o que lhe assegura, sem paixões, mas com a isenção que esse exige de uma análise distanciada, uma posição no centro deste debate sobe cultura, meios, massa, mensagens, etc.

Gilmar de Carvalho é doutor em comunicação e professor do Departamento de Comunicação Social da UFC. A íntegra do ensaio foi publicada na Revista de Comunicação Social da UFC, Vols. 13/14, ano 1983/1984.